De trauma a terapia: Salão Franjinha transforma corte de cabelo em experiência acolhedora para crianças com autismo
- Rede Almanaque
- 8 de jun.
- 6 min de leitura
O ambiente oferece uma experiência humanizada, respeitosa e adaptada às necessidades de crianças com autismo.
Por Flávio De Sousa Santos

Após enfrentarem inúmeras dificuldades para encontrar um salão adequado ao filho Giovanni Carvalho, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos quatro anos de idade, Ana Camila Araújo e seu marido Frederico Carvalho, identificaram uma realidade triste e pouco questionada em Macapá: a ausência de espaços inclusivos para crianças neurodivergentes. Em 2022, os pais transformaram essa dor em coragem para fundar o Salão Franjinha, um empreendimento local, com grande impacto social.
A ideia surgiu quando o único salão infantil que atendia Giovanni fechou. Sem encontrar nenhum espaço capacitado para lidar com as especificidades do filho com autismo, Ana e Frederico se viram desamparados.
“Ficamos desesperados. Não conseguiamos mais cortar o cabelo do nosso filho. Chegamos a levá-lo em barbearias, mas era sempre um desafio. Eles usavam tesoura, e eu tinha medo que ele se machucasse por conta da sensibilidade”, relembra Ana.
Ex-professora de Biologia, a mãe decidiu deixar a carreira para se dedicar integralmente aos cuidados dos filhos, ambos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ao notar que as crianças se assustavam com o barulho das máquinas e eram sensíveis ao toque da tesoura, ela passou a pesquisar e estudar sobre o autismo.

Os pais decidiram se especializar juntos em cursos na área da beleza, e concluíram diversas capacitações centralizadas ao autismo para atender e entender as características das crianças. Diante das dificuldades que enfrentavam no dia a dia, Ana e Frederico decidiram transformar o problema em solução. O que era um desafio familiar, tornou-se um negócio de nicho com propósito e inovação, transformando experiências traumáticas em momentos terapêuticos.
“O objetivo inicial era cortar o cabelo do meu filho, de onze anos. O que antes era um tormento, hoje é algo leve e até divertido para as crianças. Frequentemente, os pais chegam dizendo que seus filhos são agitados, mas aqui eles se divertem e ficam mais tranquilos”, conta Ana.

Pequeno negócio, grande impacto
Crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) apresentam alterações no processamento sensorial, como hipersensibilidade tátil, uma aversão ao toque leve, e hipersensibilidade auditiva, caracterizada pela reação negativa a sons altos ou inesperados. Essas sensibilidades podem tornar atividades cotidianas, como cortar o cabelo, em experiências extremamente desconfortáveis e estressantes, tanto para a criança quanto para a família.
Vivendo os mesmos desafios enfrentados por muitos pais atípicos, eles decidiram criar um ambiente lúdico e acolhedor, pensado nos mínimos detalhes para o bem-estar dos pequenos.

O espaço conta com brinquedos, aparelhos sensoriais e equipamentos adaptados, todos projetados para proporcionar conforto e segurança. O salão foi planejado para que os clientes possam brincar e se distrair enquanto os profissionais especializados realizam o atendimento de forma tranquila e cuidadosa.
A proposta inovadora deu tão certo que o empreendimento passou a atrair famílias de diferentes bairros de Macapá e até de outros municípios do Amapá. Com aproximadamente 80% do público formado por crianças neurodivergentes, o espaço se consolidou como referência em atendimento especializado e inclusivo na região Norte.
Durante uma visita a Macapá, vinda de Laranjal do Jari, Ocemilde Silva, avó do José Heitor, de 6 anos de idade, soube da existência do Salão Franjinha por meio de uma amiga. Curiosa, decidiu levar o neto para cortar o cabelo. Ao ver a forma acolhedora como ele foi atendido, sentiu um grande alívio. “Foi a primeira vez que vi o Heitor tão tranquilo em um salão. Saí de lá com o coração mais leve”, conta emocionada.
Ela recorda como foi desafiador, no início, levar o pequeno as barbearias. “Era uma verdadeira luta”, relembra Ocemilde. Ela mencionou que muitos cabeleireiros não sabiam o que fazer diante a situação, o que tornava o momento ainda mais tenso. “Eles tinham medo de machucar o Heitor, e para ele também era muito difícil. Qualquer barulho ou movimento brusco já o deixava agitado, e ele fazia um escalado”, relembra.

Satisfeita com o atendimento diferenciado do ambiente capacitado, Ocemilde sempre que visita Macapá, faz questão de levar o neto ao local. Ela destacou como é raro encontrar empreendimentos voltados para pessoas autistas. “Fiquei encantada quando soube que existe um espaço tão acolhedor para as crianças. Dá alegria saber que um lugar assim existe”, finaliza, tranquila.
Além do impacto social, o estabelecimento movimenta a economia local
A princípio, Ana e Frederico assumiram os cargos de cabeleireiros, mas com a crescente do salão, hoje lideram uma equipe com cinco profissionais contratados, todos capacitados para lidar com o público neurodiverso. Isso gerou novos postos de trabalho e qualificação de mão de obra especializada, que evidencia como pequenos negócios podem ser vetores de inclusão e desenvolvimento socioeconômico.
Um desses profissionais é o cabeleireiro Lucas Matos, de 28 anos, que encontrou no Salão Franjinha não apenas um emprego, mas uma missão.
“Nunca imaginei que cortar cabelo pudesse ser algo tão transformador. Aqui, a gente aprende a ter paciência, a respeitar o tempo da criança e, acima de tudo, a escutar”, diz, emocionado.

O cabeleireiro contou que trabalhar com crianças neurodivergentes exige sensibilidade e dedicação, e trouxe um novo sentido à sua carreira. “Cada olhar de confiança que recebemos, vale mais do que qualquer diploma. É gratificante ver que meu trabalho pode ajudar uma família a se sentir acolhida”, relata.
Antes de entrar para a equipe, Lucas participou de uma formação com psicólogos e pedagogos para aprender a reconhecer sinais de sobrecarga sensorial e a adaptar o ambiente para reduzir estímulos que causam desconforto nas crianças. O profissional ressaltou que as capacitações foram essenciais para ele compreender e poder agir da forma correta e humana ao atender seus clientes.
Um espaço para famílias e redes de apoio
Como pais atípicos, Ana e Frederico se sentiam invisibilizados e desrespeitados por profissionais com seus filhos, muitas vezes marcadas pela falta de preparo e conhecimento de estabelecimentos que não tinham o conhecimento adequado e experiência para atender crianças com autismo.
Foi a partir dessas situações que surgiu o grande diferencial do Salão Franjinha: o atendimento humanizado. Além de priorizar o bem-estar e o conforto das crianças, o espaço também acolhe e respeita os sentimentos e desafios dos pais, criando uma experiência mais leve para toda a família.
Com o tempo, muitos clientes se tornaram amigos. O salão se transforma em um ponto de encontro, onde pais trocam experiências, compartilham contatos e criam grupos de apoio para falar mais sobre o tema, para que assim outros estabelecimentos possam ser criados para atender, incluir e acolher um público muitas vezes negligenciado, o que agrega valor e mostra responsabilidade social do empreendimento.
“Nosso foco principal é o atendimento humanizado, porque entendemos o quanto isso faz a diferença para os pais. Aqui, acolhemos não só as crianças, mas também suas famílias. Ter com quem contar, alguém que compreenda sua realidade, é essencial, e foi justamente esse tipo de apoio que eu senti falta quando recebi o diagnóstico dos meus filhos. Hoje, é isso que buscamos oferecer aos nossos clientes”, explica Frederico, orgulhoso do que construiu.
Expansão e fortalecimento do empreendedorismo inclusivo
Diante do sucesso e da crescente demanda, o Salão Franjinha expandiu seus serviços. Embora o foco principal sejam as crianças, agora o espaço também atende adultos, especialmente os pais que muitas vezes não tinham com quem deixar os filhos.
“Estamos ajustando o ambiente para receber toda a família com mais conforto. A ideia é que o salão seja um lugar de acolhimento completo”, afirma Frederico.

Com mais de dois anos de funcionamento, o empreendimento se tornou um exemplo de responsabilidade social e econômica, mostrando que é possível unir propósito, inovação e inclusão em um pequeno negócio. O modelo do Salão Franjinha reforça como iniciativas locais podem transformar realidades, gerar renda e fomentar redes solidárias, contribuindo diretamente para o desenvolvimento social da cidade.
“O mais gratificante é ver o sorriso das crianças e o alívio dos pais que, pela primeira vez, se sentem compreendidos”, ressalta Ana Camila.
O Salão Franjinha transformou-se em um verdadeiro ambiente terapêutico, não apenas para as crianças, mas também para suas famílias. O atendimento humanizado e o cuidado são essenciais para conquistar a confiança dos clientes e fidelizá-los. Mais do que cortes de cabelo, o espaço oferece acolhimento, respeito e empatia. Ao vivenciarem as dificuldades enfrentadas por seus próprios filhos, os empreendedores reconheceram a importância de criar uma rede de apoio para outros pais que enfrentam os mesmos desafios, ampliando o impacto social do negócio.
"Hoje, quando Giovanni sorri durante o corte de cabelo, lembro de todas as portas fechadas que enfrentamos. Agora, nós abrimos uma para outras família”, finaliza Ana, feliz.
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