"Irreversível": a violência contra as mulheres e sua representação no cinema
- Flávio Sousa
- 7 de jan.
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de jan.
Drama brutal de Gaspar Noé provoca intensos debates, especialmente em relação à uma cena de estupro que dura dez minutos em plano sequência

Exibido pela primeira vez no Festival de Cinema de Cannes, em 2002, o filme ‘Irreversível’ dirigido por Gaspar Noé, é uma obra que expõe, de forma perturbadora e impactante, a violência contra as mulheres e a brutalidade de um evento traumático. O longa, que segue em ordem cronológica inversa, conta a história de dois homens, Marcus (Vincent Cassel) e Pierre (Albert Dupontel), que estão em busca de vingança após a agressão brutal sofrida por Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus e ex-namorada de Pierre.

A obra se tornou um clássico cult, não só pela estrutura temporal inovadora, mas principalmente pela inclusão de uma cena extremamente brutal de estupro, que dura 10 minutos em plano sequência, protagonizada pela personagem de Monica Bellucci.
O filme provoca uma discussão sobre o papel do cinema na construção de imagens de violência e justiça, especialmente no que diz respeito à mulher como vítima. Em um contexto social onde a cultura do estupro e a objetificação feminina ainda persistem, Irreversível força o espectador a confrontar as implicações dessas realidades de maneira visceral.
A obra não oferece uma solução simples ou um alívio para o sofrimento de Alex, em vez disso, nos força a refletir sobre as cicatrizes deixadas pela violência e as dinâmicas de poder, culpa e vingança. O filme propõe uma reflexão profunda sobre os efeitos da violência sexual na vítima e nas pessoas ao seu redor.

Quando Irreversível estreou, o diretor Gaspar Noé se defendeu das críticas com um argumento respeitável. “As pessoas enlouqueceram me acusando de misoginia e homofobia, isso é estúpido. O fato de haver personagens que refletem aspectos do ser humano não significa que você concorde com eles”, disse o diretor.
Como a cena do estupro em Irreversível ganhou sua terrível reputação?
Em primeiro lugar, pela duração: filmado em plano fixo, que dura dez minutos. Além de ser gráfica, a cena mostra o membro ereto do agressor (adicionado na pós-produção) e termina com Alex (Monica Bellucci) sendo brutalmente espancada, onde a cabeça da personagem foi repetidamente batida no chão. Segundo: 250 pessoas abandonaram a sala onde o filme foi exibido no dia da estreia porque não suportaram a violência explícita de Irreversível.
A grande maioria dos críticos (entre eles o renomado crítico do El País, Ángel Fernández-Santos) considerou a violência retratada desnecessária e imoral, o que provocou enorme curiosidade sobre a obra. E terceiro: Robert Ebert, crítico de cinema mais importante do mundo, deu bênção ao filme.
Foi ele quem disse que a ordem cronológica do longa era “interessante” e que uma montagem diferente alteraria radicalmente o significado do longa. Para ele, o fato das agressões violentas ocorrerem no início e depois de toda a trama se desenrolar em um flashback é o que impede o filme de ser classificado como “pornográfico”. Ele é, de certa forma, o culpado pelo filme ter se tornado atual novamente 22 anos depois.
O crítico Robert Ebert ainda enfatizou que a ordem do filme e o fato de sabermos de antemão que a protagonista seria estuprada, faziam com que as cenas em que ela dança em uma festa com um vestido sugestivo fossem vistas “como um risco que não se deve encarar. Em vez de torná-la sexy e atraente, faz com que pareça vulnerável e em perigo. Embora seja verdade que uma mulher deva se vestir como quiser, nem sempre é inteligente”.
Além disso, o crítico constatou que a personagem encarnada por Monica Bellucci era especialmente interessante e louvável pela resistência que opunha ao ser agredida.
“Desde o primeiro momento, vemos que Alex não é apenas um objeto sexual ou uma companheira romântica, mas uma mulher muito forte que luta com o estuprador até o último segundo. Que ela usa todas as ferramentas ou táticas à sua disposição para tentar detê-lo. Que perde, mas não se rende. Isso torna sua doçura e ardor muito mais óbvios. Esta mulher não é apenas um ser humano muito sensual, como costumam ser as mulheres, mas uma lutadora com um feroz instinto de sobrevivência”.
Ou seja, na percepção do crítico, a personagem é digna de respeito por enfrentar o estuprador, mesmo sabendo que resistir coloca sua própria vida em risco.

Já o crítico do The Guardian, Peter Bradshaw, viu claramente que se tratava de um filme em que o ponto de vista feminino não foi levado em consideração de modo algum e que, às vezes, a ficção toca perigosamente o real.
“A única coisa que lhe interessa é a ira masculina. O diretor Gaspar Noé tem uma veia machista inconfundível em tudo o que oferece. Parece estar dizendo: ‘Quem é o chefe aqui? Ei? Quem é o diretor?’. Marcus e Pierre, os dois protagonistas masculinos, são informados por um policial local que nada pode ser feito em relação ao estupro de Alex, que a vingança é um direito humano e o que eles podem fazer é tentar encontrar o culpado. O filme nos apresenta um mundo em que as injustiças são resolvidas por jovens de cabeça raspada. Não é preciso ser nenhum gênio para entender que tipo de ideologia fomenta isso.”

Monica Bellucci falou em várias entrevistas sobre como filmou a cena de Irreversível, e que talvez, foi o momento mais memorável de sua carreira. A filmagem se estendeu por dois dias e se repetiu seis vezes. Ela também contou que o ator com quem contracenou, que era seu companheiro na época, rejeitou o filme num primeiro momento.
“Disse que o que o Noé tinha em mente era forte demais, duro demais para os dois. Nós já tínhamos trabalhado juntos antes, mas nunca havíamos ido tão longe", contou a atriz.
O longa não é apenas uma condenação da violência contra as mulheres, mas também uma crítica à maneira como a sociedade lida com o trauma, o sofrimento e a retribuição. Ao utilizar uma linguagem cinematográfica inovadora e, ao mesmo tempo, perturbadora, Gaspar Noé criou uma obra que exige do espectador uma reflexão profunda sobre o impacto da violência e as formas como ela é representada e processada no contexto cultural e social.
A representação da violência contra as mulheres no cinema, como observada em Irreversível, é complexa e muitas vezes controversa. Noé não busca apenas chocar o público com imagens extremas, mas também questiona as reações da sociedade diante de tal violência. A natureza gráfica e visceral da cena do estupro, que é filmada em um único plano longo e contínuo, visa enfatizar a dor e o sofrimento da vítima, mostrando como a violência pode ser irreversível e devastadora.
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